Faz tempo que eu ando querendo escrever pra você. Por vezes
eu quis que fosse uma carta de ódio, de raiva, de dor. Algo que te fizesse
compreender as feridas abertas, os sonhos adormecidos, os medos enclausurados
no vazio que mesmo minha alma tão preenchida ainda insiste em ter. Por vezes,
eu quis que fosse uma carta de amor, dessas que fazem a gente lembrar pra
sempre, se sentir amado, ou ainda, que te desse a dimensão do espaço que havia reservado
a você em minha vida, no meu corpo, nos meus sonhos. Hoje a vontade de escrever
a você voltou, mas de uma maneira diferente, esquisita, uma vontade de contar a
você tudo sobre mim. Abrir o livro, o jogo, a casa, os caminhos, as certezas,
as jornadas, eu.
É engraçado contar tudo sobre mim para alguém que passou
tantos dias ao meu lado, que cansou de me ver completamente nua, nas mais
diferentes posições, alguém que conhece o gosto da minha pele, do meu tempo, do
meu sexo. Engraçado, mas hoje confesso que não me pasma ter que te contar
tudo sobre mim. Em uma terra de mentiras, nós mulheres mentimos sempre a nós mesmas,
pra nos fazer agradável, pra fingir que estamos agradadas. E Ainda, eu preciso
te dizer que por trás da mística que homens pretos conscientes como você
atribuem a nós mulheres pretas, existe uma imensidão, um rio, um mar sem fim,
de dor e vergonha, de pavor do fracasso. Eu preciso te dizer ser preta é osso.
Se eu quisesse eu poderia recontar nossa história, dia a
dia, hora a hora, mês a mês, briga a briga, sexo a sexo, conversa a conversa.
Nós mulheres pretas aprendemos com a vida, é preciso ter memória boa, porque se
nossos homens nos traem, nossa memória também pode fazer o mesmo, e a história
também.
É bizarro, mas enquanto escrevo a você meus braços tremem,
eu tenho medo da resposta ou da falta dela, mas é preciso enfrentar a tudo e a
todos, inclusive a você, a quem um dia eu achei que esteve nos meus braços, a
quem um dia eu achei que me veria gritar de dor e amor na sala de parto. A história
é cruel, foi cruel conosco. Ainda dói tanto meu amor, mas tanto que as vezes
sinto meu corpo todo travado, e sinto uma vontade louca de arremessar essa dor
junto com todas as nossas lembranças pra bem longe de mim. Longe, tão longe que
nem eu, nem você, nem ninguém posso achar. Mas lembrança não se arranca, não se
lança, não se arremessa. Lembrança a gente guarda, num canto sagrado da gente.
De tudo fica um pouco, e de você ainda quero guardar o amor que senti, e ainda
sinto. Amar é uma coisa boa, é por isso que se vive por amor as coisas. Esse
sentido abstrato que deram ao amor não é real. Amor é o sonho permanente de uma
vida melhor. E eu ainda sonho com uma vida melhor pra você.
Você precisa saber mais sobre mim, você precisa saber mais
sobre mim, você precisa. É como a música que comentamos naquela noite infernal
que vivemos poucos dias atrás. “... andar com a gente, me ver de perto, você
precisa...”.
Precisa saber que mesmo quando achou que já conhecia tudo,
que tinha desvendado tudo sobre mim, você não sabia migalha de tudo o que eu
sou. Vocês homens tem um mania tão feia de tomar tudo pra si, de achar que
conhecem, que sabem, que mandam, que gozam, que fazem gozar, que podem nos
ensinar como viver, como andar, como se ama, como se briga, como se dá amor,
como se tira amor, como se trata gente, como se trata bicho, como faz pra
passar a dor, como se enfrenta o medo. Vocês são burros, burros. É só gente burra que quer ensinar o que não
sabe. E meu amor, vocês não sabem nada.
E no mesmo passo que não sabem nada, o que sabem ignoram.
Você sabia qual seria minha reação quando fez tudo o que fez. Você inovou, ou
não, quando conseguiu passear pela democracia racial para me trair. Foi a
branca, foi a japonesa, foi a preta. Inovou no abstrato, primeiro me traiu os
sonhos, depois o medo, depois a confiança, a fé, e por fim, traiu até a minha
dor.
Não sabe que desse medo que tenho desses seus momentos de “tesão”,
existe um nojo, um asco profundo da possibilidade de me ver perdida nessas
lembranças. Eu sei que ainda posso muito mais, muito mais. Posso mais dor,
posso mais medo, posso mais raiva, mais insegurança, mais frustração, mas posso
muito mais me reinventar em mil, em milhares, em quantas forem necessárias pra
continuar andando, no ritmo que a vida consentir. (Você acha bobo, mas acredito
mesmo no consentimento da vida). Você não sabe, mas eu sei que tudo isso vai
passar. Vai passar se mantendo, pra que eu não esqueça nunca de todas as batalhas
que já travei. Dessa vez, esqueço-me do amor a ti, e lembro-me do amor que a
vida me consentiu.
Guardo meu amor a ti em um bolso secreto dentro do peito, não é o momento de amar a você. É momento
de amar a mim, a minha vida, a minhas irmãs de cor, medo e dor. Amo, nesse
momento, amo tanto cada uma delas, amo de um jeito que nunca amei a ninguém. As
amo, dos pés a cabeça. Dos defeitos as qualidades. Você não deve imaginar, mas
eu sou capaz de sentir tanto, mas tanto amor.
Você não sabe que eu já pensei em arrancar os cabelos, me
tornar invisível, deixar de existir. Não sabe que eu já quis invadir sua
cabeça, chacoalhar suas lembranças, pra ver se assim você aprende que dor com
dor se paga. E que quem merece viver devorado por lembranças terríveis é você.
Não me parece justo, você precisa de uma vida melhor.
Não sabe que eu tenho vontade de experimentar mais prazeres
do que os que você me proporcionou. Não sabe que eu me lanço na vida todas as
manhãs, esperando tudo que pode vir, de peito aberto. Que eu consigo e já
consegui escorraçar todas as chagas que você já me causou, e que mesmo que elas
voltem sempre, eu conheço o prazer de viver sem elas.
Não sabe que eu me divirto com as nossas melhores lembranças.
Celebro a vida, sua existência, os sorrisos que me arrancou. Mas guardo no
bolso, pra não gastar a toa, me economizo, te economizo. Em tempos melhores
prometo, vou dispensar boas tardes lembrando da gente. Não sabe que eu guento
seguir sozinha.
Não sabe que existem homens que me reparam detalhes que você
nunca deu atenção. Não sabe que já houve homem que me pediu para contar minhas
pintas. Você sabe que eu tenho pintas? Tenho muitas, tenho uma que parece um
coração na coxa, outra parecida nos seios.
Veja que mulher teve nas mãos! Um coração nas coxas, outro nas mamas.
Você é um bobão, quem mais haverá de ter tantos corações espalhados pelo corpo.
Agora dou risada de você, que deixou escapulir das mãos uma mulher como eu.
Não sabe que seu eu quisesse eu fazia um mapa do teu corpo,
e escrevia uma pagode desses que você adora, só pra você. Você teria um pagode
só seu, escrito por alguém que se aventurou a
mapear cada pedaço do seu corpo que lhe dava prazer. Bobo, você é bobo.
Me perdeu. Dou risada sozinha, de raiva. Não mapeio mais corpo de homem nenhum.
Agora vou ser mapeada.
Você não sabe, mas uma hora eu vou deixar de pensar em você
antes de dormir. Mas mesmo assim, vou lembrar de você, pro bem e pro mal. Você
não sabe, mas você nunca vai esquecer de mim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário